quarta-feira, 18 de junho de 2008

Raimundo Eufrásio

Subir o serrote pelo caminho pedregoso e íngreme não era novidade para ovelho cearense marchante conhecedor de todas as trilhas do sertão central e da Serra Grande. A novidade era o caminho molhado da chuva forte que caiu na noite anterior.Geralmente por ali era seco o ano todo, sem verde e o sol a pino. Num dia como aquele a paisagem dava brilho no olhos. Um córrego aparecera ao lado da trilha que subia a comunidade de Serra Branca, por onde o velho passava, puxando o jumento de carga, para levar todo tipo de mercadoria e vender fiado aos nativos de vida solitária, pacata e pobre daquela regiãodo semi-árido.Foi assim que imaginei a figura de meu avô materno logo que o Beto (irmão de meu pai) começou a lembrar das histórias do 'Seu' Raimundo Eufrásio. Estávamos subindo pelo mesmo caminho por onde supostamente meu avô teria passado muitas vezes em seus tempos de melhor saúde e força. “Ele era conhecido por todo mundo aqui e gostava de ajudar quem tinha dificuldade pra pagar as parcelas”, contava meu tio, enquanto perdíamos o fôlego para subir a pé a serra. Queríamos chegar num casarão antigo construído lá no alto. O mesmo casarão que havíamos identificado pelo binóculo do terraço de um prédio em construção no Conjunto Ceará, que ficava a talvez 50 quilômetros dali. A forma como meu tio descrevia a cena, tornava meu avô um herói, personagem principal de uma epopéia para aquela gente esquecida entre os sertanejos de pé de serra cantados no fole do sanfoneiro local. Meu avô, Raimundo Eufrásio, vendia carne de sol, temperos, pavios de lamparinas e todo tipo de burundangas que se possa imaginar. Era assim que ele ganhavaa vida. Andando pelo mundo sem parar em casa. Longe da família e perto de gente desconhecida que se reencontrava a cada dia nos mais distantes lugarejos do sertão. Foi essa a imagem que desenhei dele durante o passeio que fazíamos pra fotografar e conhecer mais uma região tão perto de Fortaleza que nos atraiu após conseguirmos um binóculo e passarmos uma semana observando no terraço do prédio em construção os arredores de Fortaleza.
Na verdade eu lembro da figura do meu avô bem antes daquele dia. Quando eu tinha cinco anos ele sempre ia nos visitar lá em casa, e eu lembro dele sempre chegando bem cedinho no portão com um saco grande nas costas, a barba mal feita e o rosto desgastado de quem muito penou a vida toda para ganhar o pão. Ele me chamava de 'Coronel'. “Oh, meu coronel, como é que o senhor está”, dizia ele me cumprimentando. Imagino que eu era já naquela época um menino comportado mas muito curioso e perguntador. E talvez ao vê-lo chegar (mesmo eu sem muita intimidade com ele) já corria para o portão pra recebê-lo e lhe fazer uma sabatina de perguntas: 'o senhor tá vindo de onde, o que é que tem aí nesse saco, veio fazer o que, já comeu goiaba hoje' e por aí vai... Então ele deveria assim ficar meio que orgulhoso de ver o neto falante e bisbilhoteiro e saía com essa: “Oh, meu coronel, como é que o senhor está”. Depois, esse carinhoso apelido era reproduzida pela Nainha, minha tia, e pelo Valmir, outro tio, filho do seu Raimundo Eufrásio, que não nos visitava por muito e muito tempo.
São lembranças vagas, que tenho do meu avô. O outro avô por parte de pai morrera quando meu pai ainda era garoto. Então a única imagem que tenho dessa figura familiar, que é a figura do avô, é do seu Raimundo Eufrásio, o pai da minha mãe Mirany. Acho que, por ele ser muito humilde e muito gente boa, ele me tratava tão bem. Tanto que até me concedeu essa patente alta, mesmo eu com apenas 5 anos de idade e já promovido a coronel. Mas o que eu não sabia, e que depois descobri, é que ele era um ser humano generoso mesmo. Que não tinha tempo ruim pra ele. Não era mesquinho, nem ranzinza, nem avarento. Ele era um fanfarrão que, apesar de não beber, gostava de fartura e de alegria. Ah, e de um rabo de saia também, é claro, não é!
Depois me falaram que ele, após chegar das longas viagens de trabalho, fazia aquela festa, não faltava nada. Era rapadura, carne seca e farinha pra todo mundo, sem pena. Muitos anos depois, eu procurando traços de origem de minha personalidade em meus demais parentes falei pra minha mãe que a única alternativa que havia era o meu avô. Eu devo ter herdado daquele senhor gente boa algumas características que não encontro tão fácil em outras pessoas. Talvez se o tivesse conhecido eu teria me desiludido, mas como não conheci ficou essa esperança.

Um dia ele ficou doente, foi internado num hospital e nunca mais eu o vi. Minha mãe sempre me levava lá. Mas eu nunca o via. Quando voltávamos, ela estava chorando, e muito triste. Lembro que eu não entrava no hospital, ficava numa espécie de jardim lá fora. O lugar era escuro e silencioso com luzes lá longe. Íamos sempre a noite devido a distância e aos afazeres diários. Fazia um frio estranho e, eu apesar de sempre gostar de sair decasa, não gostava de ir lá. Não entendia muito o que estava acontecendo eficava triste porque eu nunca via meu avô, aquele senhor que me dava tanta patente e me chamava de coronel. Quando ele morreu, eu lembro de tudo. O céu estava nublado de forma peculiar. As nuvens eram todas redondas e se dispunham separadamente em pequenos círculos distantes com uniformidade uns dos outros. Parecia uma cidade no céu, parecia um Conjunto Ceará feito de nuvens. Eu lembro porque, naquele dia fiquei olhando pra cima, pro céu, e passei a pensar que, toda vez que alguém morria, o céu ficava daquele jeito. Igual a uma cidade, que era pra onde as pessoas iam depois de morrer.
A casa estava cheia. Pra mim era uma festa. Mas meu avô silenciara e eu nunca mais ouviria alguém me chamando de coronel nem chamaria nunca mais ninguém de vô. Até hoje tenho saudades dele. Daquela figura carinhosa que, tenho certeza, me deixou uma herança muito valiosa, e que trago dentro de mim até hoje: Eu sou o neto legítimo do 'seu' Raimundo Eufrásio. Com muita honra.

quinta-feira, 5 de junho de 2008

O pé-de-goiaba e o violão

O violão está presente na biografia de quase todo mundo. A diferença é que alguns diante dele se apaixonam, outros não. Eu me apaixonei pelo violão logo, antes dos 10 anos. E aquilo virou um vício mesmo.
Acho que há um marco na minha juventude. Antes e depois do violão. Eu antes de me apaixonar pelo violão era um contemplador profissional. Chegava da escola e ia direto para cima da casa. Subia pelo meu pé de goiaba favorito. Lá em cima, no galho mais alto, passava para o chamado capote do telhado. Lá eu deitava na sombra da goiabeira e passava a tarde toda olhando para as nuvens, vendo formas diversas no céu.
Na verdade eu não passava a tarde toda, porque minha mãe logo me chamava lá de baixo pra eu varrer o quintal ou coisa parecida. De qualquer forma, antes do violão eu era, vamos dizer assim, o poeta da goiabeira desenhando versos no céu azul de nuvens brancas enigmáticas.
Mas o violão, que é um instrumento muito sensual mesmo, suas curvas e formas, combinadas com o som suave de veludo marrom, parece ter sido feito propositadamente para seduzir. Me seduziu. Além disso, tem aquele negócio né, de que se tu aprende a tocar algumas músicas vira logo o famosos do quarteirão. Então, eu depois que ví pela primeira vez um, passei a perseguir o violão obsessivamente, e deixei um pouco de lado o meu pé de goiabeira favorito.
Lembro como se fosse hoje o dia em que na casa de minha vó, após uma festa regada a cachaça e violão, todos saíram no final do dia, e lá no fundo do quintal eu fiquei a sós com o violão. Olhei pra ele e disse a famosa frase: 'Em fim, sós'. Ponho ele no colo (eu ainda era muito pequenininho e não conseguia abarcá-lo completamente, mas deu). Bem devagar passei a mão na cintura, na boca, no braço, no tampão, nas cordas e comecei a dedilhar aleatoriamente os bordões. Aquele som me causava delírio e prazer quase sexual. Me entreguei definitivamente a paixão.
No outro dia infernizei minha mãe pra comprar um violão. 'Compra, compra, compra, por favor!'. Até que meu pai comprou. Foi o melhor dia da minha vida de menino, quando fomos até a loja escolher um. Chegamos lá havia centenas, cada um mais lindo que o outro. Entrei imediatamente em estado de êxtase profunda, não queria mais sair de lá. Mas, adequando o valor ao orçamento, meu pai escolheu um ideal com ajuda do vendedor. Foi um Gianini 18. Tinha capa e tudo. Pegamos o bicho e saímos. Eu todo orgulhoso da vida.
Daquele dia em diante, larguei de vez o telhado e a goiabeira. Quando chegava da escola ia direto pro quarto me agarrar com o violão. E passava a tarde toda. O problema era o meu irmão. Eu tinha que dividir o meu violão com ele, e ele ainda dizia que o meu violão era dele. 'Papai, papai, papai'. 'O violão é dos dois'. Tive que dividir. Mais o 'verme' era tão grande que a gente tinha que marcar hora pra tocar. Pode?
Uma vez, nós voltávamos da escola, com pressa pra pegar o violão primeiro, entramos no ônibus errado. Eu logo me apavorei com medo de me perder naquela gigantesca cidade que Fortaleza já era. Só tínhamos o dinheiro certo para uma passagem. 'Vamos descer, vamos descer', eu disse. Descemos por trás após informar ao trocador que não iríamos naquela viagem. Depois o meu irmão ficou curtindo com a minha cara de choro. Disse que eu tinha me apavorado e que o culpado havia sido eu. Chegamos em casa, ele cheio de moral, pegou o violão primeiro. Eu disse: 'não, agora sou eu'. 'Que nada, meu irmão, você é muito é chorão, cabeção', ele retrucou. Não tive saída. Fui direto pra goiabeira, deitei no telhado e fiquei desenhando nas nuvens até mais tarde, quer dizer, até minha mãe me chamar: 'Váaaaaalber, varrer o quintal!!!'.
Legal mesmo foi no dia que teve uma festa lá em casa. Era sábado. Os meus tios numa rodada disputando quem tocava melhor Roberto Carlos e a jovem guarda. 'Olha aqui, presta atenção...'. Eu só ouvindo, doido pra aprender uma musiquinha só. De repente chega um primo do interior (ele era de Ipueiras, a cidade de origem da família do meu pai). Rapaz, o cara pegou o violão e soltou o gó gó: 'Ehhh! Oôhhh! Vida de gado...'. Nunca eu havia presenciado aquele estilo. Ele cantava alto mesmo. Os meus tios cantavam assim meio João Gilberto, a voz pouquinha, baixinho, violãozinho e tal. Mas esse primo do interior impressionava qualquer um. Todo mundo lá no dia ficou elogiando o cara. Meu irmão disse que não gostou. Mas eu achei legal a diferença. No outro dia, tome aprender Zé Ramalho e música nordestina. Foi outra virada na minha carreira de fundo de quintal. 'Apenas apanhei na beira-mar, um táxi pra estação lunar...'. Ah! O meu sonho então passou a ser: subir com o violão na goiabeira e tocar uma música olhando pro azul do céu. “... e nesse dia branco, se branco ele for, esse tão grande amor, grande amor...”