terça-feira, 9 de setembro de 2008

O Mar e o Cometa

As dunas brancas e os verdes mares salgados do Ceará são parte presente das minhas lembranças mais remotas. Meus pais até hoje frequentam assíduos o litoral; e quando eu tinha uns quatro anos, lembro vagamente da imagem do mar e a luz forte do sol pela manhã cedinho na beira da praia. Nós íamos sempre muito cedo. Minha irmã tinha pouco mais de 1 ano e era preciso bem protegê-la do sol. Papai a cobria com uma caixa grande de papel fotográfico P&B, tamanho 50x60cm. Como ele era fotógrafo, aquelas embalagens eram o que mais eu via lá por casa. Era o ano de 1974. Nas periferias e interiores cearenses ainda reinava a fotografia preto e branca. Meu pai ganhava o pão fotografando e revelando pôsteres gigantes em P&B. As poses eram as mais inacreditáveis possíveis; maria-chiquinhas, vestidos estampados, cavalinhos e muita maquiagem para um sorriso na posteridade. Mais tarde quando vi pela primeira vez, no laboratório escuro com luz vermelha, ele revelando aquelas imagens, fiquei maravilhado.
Mas, voltando ao litoral. Como meu pai viajava muito em seu trabalho, a família também saía bastante do Estado do Ceará, sempre para cidades menores. Então estávamos em uma cidadezinha litorânea próximo a Natal, no Rio Grande do Norte. Era domingo e de repente eu me ví num castelo enorme e assustador(depois que eu voltei lá, já mais velho, o castelo tinha diminuído bastante), mas pensei: encontrei minha fortaleza para defender o mundo dos piores vilões da face da terra; ou então aquele seria o 'Forte Apache' dos meus sonhos que nunca tinha ganhado do Papai Noel no natal. Bom, de qualquer forma, eu era apenas um menino bobo que queria ser um super-herói, certo!
O castelo que vi era na verdade o forte de Ponta Negra, até hoje um dos principais pontos turísticos dos nossos vizinhos potiguas.
De uma forma ou de outra, aquele foi um domingo como nunca tinha tido, apesar de ter chorado muito quando não me subiram na torre de comando, de onde eu iria dar as ordens de ataque. A foto do choro está lá pela casa de minha mãe até hoje. Eu só de cueca, do lado do meu irmão, com o braço na cara e a boca de berreiro perto do mirante mais alto apontado para o mar sem poder subir.
Nessa época nós estávamos morando num hotelzinho não sei de que bairro de Natal, que naquele tempo ainda era uma cidadezinha. Durante a semana, eu ficava em casa; e escolhi minha janela preferida. A mais alta. Eu colocava uma cadeira perto dela, subia e dizia pra minha mãe: vou fazer uma 'canta', 'Lé, lá,Lé, lá,Lé, lá,Lé, lá,'. A bem da verdade, disso eu não lembro bem, mas quem contou foi minha mãe.
Do que eu lembro mesmo daquela época é do mar e do cometa. Não sei onde foi que ouvi falar que por aqueles tempos no céu estava passando um cometa. Só sei que depois que soube que existia isso no céu, além das estrelas, uma luz passando com calda comprida e fazendo clarão; depois que fiquei sabendo disso, então passei a esperar com mais ansiedade a noite chegar; subia no banquinho perto da janela e apontava: “O coneta, o coneta”. Falava meio enrolado e minha perguntava: 'é o que? A canta?”. E eu respondia; “não, não, o coneta, o coneta”... Via o tal cometa em toda parte do céu.
Não sei se este é o texto ideal para se por num blog de memórias remotas, mas sei que para mim essa fase deve ter sido importante para surgir em mim o músico e o astrônomo amadores que existem na minha história. Faltou só inspiração pra contar bem contado. Quem sabe depois reescrevo melhor. É que depois de três meses sem dar continuidade aos textos, estou enferrujado. Fica o registro. tchau

quarta-feira, 18 de junho de 2008

Raimundo Eufrásio

Subir o serrote pelo caminho pedregoso e íngreme não era novidade para ovelho cearense marchante conhecedor de todas as trilhas do sertão central e da Serra Grande. A novidade era o caminho molhado da chuva forte que caiu na noite anterior.Geralmente por ali era seco o ano todo, sem verde e o sol a pino. Num dia como aquele a paisagem dava brilho no olhos. Um córrego aparecera ao lado da trilha que subia a comunidade de Serra Branca, por onde o velho passava, puxando o jumento de carga, para levar todo tipo de mercadoria e vender fiado aos nativos de vida solitária, pacata e pobre daquela regiãodo semi-árido.Foi assim que imaginei a figura de meu avô materno logo que o Beto (irmão de meu pai) começou a lembrar das histórias do 'Seu' Raimundo Eufrásio. Estávamos subindo pelo mesmo caminho por onde supostamente meu avô teria passado muitas vezes em seus tempos de melhor saúde e força. “Ele era conhecido por todo mundo aqui e gostava de ajudar quem tinha dificuldade pra pagar as parcelas”, contava meu tio, enquanto perdíamos o fôlego para subir a pé a serra. Queríamos chegar num casarão antigo construído lá no alto. O mesmo casarão que havíamos identificado pelo binóculo do terraço de um prédio em construção no Conjunto Ceará, que ficava a talvez 50 quilômetros dali. A forma como meu tio descrevia a cena, tornava meu avô um herói, personagem principal de uma epopéia para aquela gente esquecida entre os sertanejos de pé de serra cantados no fole do sanfoneiro local. Meu avô, Raimundo Eufrásio, vendia carne de sol, temperos, pavios de lamparinas e todo tipo de burundangas que se possa imaginar. Era assim que ele ganhavaa vida. Andando pelo mundo sem parar em casa. Longe da família e perto de gente desconhecida que se reencontrava a cada dia nos mais distantes lugarejos do sertão. Foi essa a imagem que desenhei dele durante o passeio que fazíamos pra fotografar e conhecer mais uma região tão perto de Fortaleza que nos atraiu após conseguirmos um binóculo e passarmos uma semana observando no terraço do prédio em construção os arredores de Fortaleza.
Na verdade eu lembro da figura do meu avô bem antes daquele dia. Quando eu tinha cinco anos ele sempre ia nos visitar lá em casa, e eu lembro dele sempre chegando bem cedinho no portão com um saco grande nas costas, a barba mal feita e o rosto desgastado de quem muito penou a vida toda para ganhar o pão. Ele me chamava de 'Coronel'. “Oh, meu coronel, como é que o senhor está”, dizia ele me cumprimentando. Imagino que eu era já naquela época um menino comportado mas muito curioso e perguntador. E talvez ao vê-lo chegar (mesmo eu sem muita intimidade com ele) já corria para o portão pra recebê-lo e lhe fazer uma sabatina de perguntas: 'o senhor tá vindo de onde, o que é que tem aí nesse saco, veio fazer o que, já comeu goiaba hoje' e por aí vai... Então ele deveria assim ficar meio que orgulhoso de ver o neto falante e bisbilhoteiro e saía com essa: “Oh, meu coronel, como é que o senhor está”. Depois, esse carinhoso apelido era reproduzida pela Nainha, minha tia, e pelo Valmir, outro tio, filho do seu Raimundo Eufrásio, que não nos visitava por muito e muito tempo.
São lembranças vagas, que tenho do meu avô. O outro avô por parte de pai morrera quando meu pai ainda era garoto. Então a única imagem que tenho dessa figura familiar, que é a figura do avô, é do seu Raimundo Eufrásio, o pai da minha mãe Mirany. Acho que, por ele ser muito humilde e muito gente boa, ele me tratava tão bem. Tanto que até me concedeu essa patente alta, mesmo eu com apenas 5 anos de idade e já promovido a coronel. Mas o que eu não sabia, e que depois descobri, é que ele era um ser humano generoso mesmo. Que não tinha tempo ruim pra ele. Não era mesquinho, nem ranzinza, nem avarento. Ele era um fanfarrão que, apesar de não beber, gostava de fartura e de alegria. Ah, e de um rabo de saia também, é claro, não é!
Depois me falaram que ele, após chegar das longas viagens de trabalho, fazia aquela festa, não faltava nada. Era rapadura, carne seca e farinha pra todo mundo, sem pena. Muitos anos depois, eu procurando traços de origem de minha personalidade em meus demais parentes falei pra minha mãe que a única alternativa que havia era o meu avô. Eu devo ter herdado daquele senhor gente boa algumas características que não encontro tão fácil em outras pessoas. Talvez se o tivesse conhecido eu teria me desiludido, mas como não conheci ficou essa esperança.

Um dia ele ficou doente, foi internado num hospital e nunca mais eu o vi. Minha mãe sempre me levava lá. Mas eu nunca o via. Quando voltávamos, ela estava chorando, e muito triste. Lembro que eu não entrava no hospital, ficava numa espécie de jardim lá fora. O lugar era escuro e silencioso com luzes lá longe. Íamos sempre a noite devido a distância e aos afazeres diários. Fazia um frio estranho e, eu apesar de sempre gostar de sair decasa, não gostava de ir lá. Não entendia muito o que estava acontecendo eficava triste porque eu nunca via meu avô, aquele senhor que me dava tanta patente e me chamava de coronel. Quando ele morreu, eu lembro de tudo. O céu estava nublado de forma peculiar. As nuvens eram todas redondas e se dispunham separadamente em pequenos círculos distantes com uniformidade uns dos outros. Parecia uma cidade no céu, parecia um Conjunto Ceará feito de nuvens. Eu lembro porque, naquele dia fiquei olhando pra cima, pro céu, e passei a pensar que, toda vez que alguém morria, o céu ficava daquele jeito. Igual a uma cidade, que era pra onde as pessoas iam depois de morrer.
A casa estava cheia. Pra mim era uma festa. Mas meu avô silenciara e eu nunca mais ouviria alguém me chamando de coronel nem chamaria nunca mais ninguém de vô. Até hoje tenho saudades dele. Daquela figura carinhosa que, tenho certeza, me deixou uma herança muito valiosa, e que trago dentro de mim até hoje: Eu sou o neto legítimo do 'seu' Raimundo Eufrásio. Com muita honra.

quinta-feira, 5 de junho de 2008

O pé-de-goiaba e o violão

O violão está presente na biografia de quase todo mundo. A diferença é que alguns diante dele se apaixonam, outros não. Eu me apaixonei pelo violão logo, antes dos 10 anos. E aquilo virou um vício mesmo.
Acho que há um marco na minha juventude. Antes e depois do violão. Eu antes de me apaixonar pelo violão era um contemplador profissional. Chegava da escola e ia direto para cima da casa. Subia pelo meu pé de goiaba favorito. Lá em cima, no galho mais alto, passava para o chamado capote do telhado. Lá eu deitava na sombra da goiabeira e passava a tarde toda olhando para as nuvens, vendo formas diversas no céu.
Na verdade eu não passava a tarde toda, porque minha mãe logo me chamava lá de baixo pra eu varrer o quintal ou coisa parecida. De qualquer forma, antes do violão eu era, vamos dizer assim, o poeta da goiabeira desenhando versos no céu azul de nuvens brancas enigmáticas.
Mas o violão, que é um instrumento muito sensual mesmo, suas curvas e formas, combinadas com o som suave de veludo marrom, parece ter sido feito propositadamente para seduzir. Me seduziu. Além disso, tem aquele negócio né, de que se tu aprende a tocar algumas músicas vira logo o famosos do quarteirão. Então, eu depois que ví pela primeira vez um, passei a perseguir o violão obsessivamente, e deixei um pouco de lado o meu pé de goiabeira favorito.
Lembro como se fosse hoje o dia em que na casa de minha vó, após uma festa regada a cachaça e violão, todos saíram no final do dia, e lá no fundo do quintal eu fiquei a sós com o violão. Olhei pra ele e disse a famosa frase: 'Em fim, sós'. Ponho ele no colo (eu ainda era muito pequenininho e não conseguia abarcá-lo completamente, mas deu). Bem devagar passei a mão na cintura, na boca, no braço, no tampão, nas cordas e comecei a dedilhar aleatoriamente os bordões. Aquele som me causava delírio e prazer quase sexual. Me entreguei definitivamente a paixão.
No outro dia infernizei minha mãe pra comprar um violão. 'Compra, compra, compra, por favor!'. Até que meu pai comprou. Foi o melhor dia da minha vida de menino, quando fomos até a loja escolher um. Chegamos lá havia centenas, cada um mais lindo que o outro. Entrei imediatamente em estado de êxtase profunda, não queria mais sair de lá. Mas, adequando o valor ao orçamento, meu pai escolheu um ideal com ajuda do vendedor. Foi um Gianini 18. Tinha capa e tudo. Pegamos o bicho e saímos. Eu todo orgulhoso da vida.
Daquele dia em diante, larguei de vez o telhado e a goiabeira. Quando chegava da escola ia direto pro quarto me agarrar com o violão. E passava a tarde toda. O problema era o meu irmão. Eu tinha que dividir o meu violão com ele, e ele ainda dizia que o meu violão era dele. 'Papai, papai, papai'. 'O violão é dos dois'. Tive que dividir. Mais o 'verme' era tão grande que a gente tinha que marcar hora pra tocar. Pode?
Uma vez, nós voltávamos da escola, com pressa pra pegar o violão primeiro, entramos no ônibus errado. Eu logo me apavorei com medo de me perder naquela gigantesca cidade que Fortaleza já era. Só tínhamos o dinheiro certo para uma passagem. 'Vamos descer, vamos descer', eu disse. Descemos por trás após informar ao trocador que não iríamos naquela viagem. Depois o meu irmão ficou curtindo com a minha cara de choro. Disse que eu tinha me apavorado e que o culpado havia sido eu. Chegamos em casa, ele cheio de moral, pegou o violão primeiro. Eu disse: 'não, agora sou eu'. 'Que nada, meu irmão, você é muito é chorão, cabeção', ele retrucou. Não tive saída. Fui direto pra goiabeira, deitei no telhado e fiquei desenhando nas nuvens até mais tarde, quer dizer, até minha mãe me chamar: 'Váaaaaalber, varrer o quintal!!!'.
Legal mesmo foi no dia que teve uma festa lá em casa. Era sábado. Os meus tios numa rodada disputando quem tocava melhor Roberto Carlos e a jovem guarda. 'Olha aqui, presta atenção...'. Eu só ouvindo, doido pra aprender uma musiquinha só. De repente chega um primo do interior (ele era de Ipueiras, a cidade de origem da família do meu pai). Rapaz, o cara pegou o violão e soltou o gó gó: 'Ehhh! Oôhhh! Vida de gado...'. Nunca eu havia presenciado aquele estilo. Ele cantava alto mesmo. Os meus tios cantavam assim meio João Gilberto, a voz pouquinha, baixinho, violãozinho e tal. Mas esse primo do interior impressionava qualquer um. Todo mundo lá no dia ficou elogiando o cara. Meu irmão disse que não gostou. Mas eu achei legal a diferença. No outro dia, tome aprender Zé Ramalho e música nordestina. Foi outra virada na minha carreira de fundo de quintal. 'Apenas apanhei na beira-mar, um táxi pra estação lunar...'. Ah! O meu sonho então passou a ser: subir com o violão na goiabeira e tocar uma música olhando pro azul do céu. “... e nesse dia branco, se branco ele for, esse tão grande amor, grande amor...”

sábado, 31 de maio de 2008

Grapette e a professora inesquecível

De passagem eu lembro vagamente de dois lances na escolinha do jardim da infância onde estudei por alguns anos e que ficava no outro quarteirão de onde eu morava, na mesma rua Maceió do bairro Henrique Jorge (periferia de Fortaleza). Era por volta de 1974.
A escola se chamava Instituto Getúlio Vargas. A diretora, uma mulher brigona, ainda lembro. Chamávamos ela de Dona Nezinha, e tinha também a Dona Meire, supervisora, não menos chata. Pelo menos essa é a lembrança que tenho delas.
Elas deviam ser pessoas boas, tirando os traumas, atrasos de vida e problemas de audição que causaram na maioria dos alunos que por lá passaram (assim como eu), o resto está tudo bem. Na verdade, o fato é que elas sempre falavam gritando (muito alto mesmo) em tom de briga com os alunos (já quase môcos) e todo mundo tinha muito medo delas. Quer dizer, todo mundo tinha mesmo era muito pânico delas. Eu acho que a gente imagina naquela época que se elas pegassem algum de nós errado, esganariam ali mesmo na frente de todo mundo. Toda vez que elas apareciam no corredor e iam se aproximando da porta das salas tocava aquela música do Alfred Hitchcock assim: Tri.. Tri ... Tri.. Tri ...Tri.. Tri ...Tri.. Tri ...
Resumindo, a pedagogia delas não era muito avançada.
Mas não é sobre isso que vou escrever. O que mais lembro daquela época é da imagem da minha professora mais querida. Ah! minha professora. Infelizmente esqueci o nome dela (depois vou telefonar pra mamãe e perguntar. Ela deve lembrar. Eu tô com o nome da professora aqui na ponta de língua mais não sai). Era.. Era... Tia não sei o que. Todo mundo chamava ela de Tia, pronto. Como é que eu lembro o nome daquelas duas barangas que gritavam o tempo todo no meu ouvido e não lembro o da minha professora querida, caramba! Tudo bem, vamos pra frente.
Bom, como eu disse no começo, são dois lances que lembro daquele tempo. E como eu esqueci mesmo o nome da professora, ela também nem tem muito a ver com o que aconteceu, não vou falar dela também.
A história é a seguinte: nos dois lances a professora deu uma saidinha da sala. Eu lembro. Foi só ela sair começou aquela bagunça. Papel prum lado, livro pro outro, muito barulho. A sala virou um festa. Todo mundo em pé e tal. Aí eu muito artista resolvi subir na mesa da professora. 'Atenção pessoal, muita atenção, olha aqui, olha aqui, eu vou tirar a roupa!!!' Ãahhh... As meninas ficaram perplexas. 'Tira.. tira... tira..Duvido!' Pois não é que eu abaixei o fecho-ecler da calça e botei o pinto pra fora todo orgulhoso e enxerido na sala de aula em pé na mesa da professora.
Pois é. Não poderia deixar de contar esse feito grandioso e revolucionário (quase poético) aqui nesse blog que dedico a minha infância radical e irada no Ceará.
Depois desci rápido, sentei na carteira, a professora chegou, todo mundo calou a boca e eu fiquei bem quietinho. Acho que alguém me dedurou pra professora, mas não lembro. Depois ela não acreditou e não deu em nada.
A outra história foi a seguinte: Eu nunca levava lanche para a escola, porque morava muito próximo, e a empregada trazia pra mim no intervalo uma vitamina de goiaba que eu recebia todos os dias pelo portão da escola. A maioria dos alunos, não. Bebiam coca-cola. Compravam na cantina que também vendia salgados e sanduíches variados. Hum... Aquilo era meu sonho de consumo, bicho besta é menino...
Um dia minha mãe me fez uma surpresa e disse pra eu levar para o lanche da escola uma garrafa cheiinha de Grapette (quem bebe repete era o slogan). Seria a minha merenda daquele dia acompanhada por um salgado que não lembro agora (merenda era como a gente dava naquele tempo para o lanche).
Fiz uma festa pra mim mesmo dentro de mim. Era muito significativo aquilo. Muito status. Tanto que coloquei a garrafa colada na minha carteira (carteira era como a gente chamava naquele tempo a cadeira e mesa conjugados onde sentávamos). Coloquei a garrafa tão perto de mim que de repente... Eu nem senti. Foi uma decepção total e a minha festa foi para no chão da sala, vermelho escuro como sangue. Eu olhei e vi azulado como vinho no chão entre os pedaços de vidro tricado entre o nome despedaçado do mais famoso refrigerante da época.
O pior foi que eu não acreditei e não acredito até hoje que fui eu quem derrubei a garrafa no chão e ela explodiu. 'Quem foi? Quem foi?' Acusava eu um suposto culpado chorando.
Bom, só sei de uma coisa: naquele dia nem que eu quisesse repetiria o grapette que nem pude beber pela primeira vez na sala antes de ter vontade de mais um. Um dia da caça, outro da professora. Quem sabe não foi castigo pela traquinagem que aprontei mesa de minha inesquecível primeira professora que esqueci o nome. Professora, mil desculpas, me perdoa, tá?

segunda-feira, 19 de maio de 2008

Doce mistério das mulheres

Continuando a falar das historinhas remotas de minha infância irada no Ceará, lembrei do nascimento da minha irmã. Quer dizer, na verdade eu não lembro de nada, as pessoas é que foram me contando depois e eu assimilei de tanto ouvir.
Bom, no início da década de 1970, éramos apenas eu e meu irmão. Eu iria completar três anos. De repente, da barriga da minha mãe saí uma outra pessoa.
Não pode ser. Mas como é que pode? Como é que é isso? De onde foi que ela veio? E ainda por cima ela não tem pinto? Êpa! Não tem pinto?
Pois é! Eu com quase três anos de idade fiquei perplexo ao ver pela primeira vez na vida uma xoxota. Fiquei chocado mesmo. Como é que pode? Não era pra ela ter uma pinta também não? Afinal, eu tinha uma, então todo mundo deveria ter também.
O pior não foi a minha perplexidade. Pior foi que depois daquele dia, em que vi minha irmã pela primeira vez e constatei que ela não tinha pinta, depois daquele dia eu passei a perguntar pra todo mundo, que via pela frente, se tinha ou não pinta.
Um vez chegou uma visita pro meu pai. Todo mundo bem sério na sala falando de trabalho, aí no meio da conversa o cabeção perguntava: ei tu também tem pinta tem? Rãn rãn rãn rãn rãn!!! essas crianças de hoje!!
Na escolinha foi só chegar na sala: professora a senhora tem pinta? Porque a minha irmã nasceu e ela não tem pinta não, oh! Até na igreja, na hora da missa, tinha uma menina do meu tamanho querendo brincar debaixo dos bancos. Eu engatinhei por entre as pernas dos fiéis, cheguei perto dela: tu tem pinta ou é barata? É barata, é? Então como é que tu faz xixi?
Eu acho que foi dessa mesma forma de questionamento infantil que Freud desenvolveu a teoria da inveja do pênis. Imagine as meninas que vêem seus irmãos nascerem com pintos. Depois olham pra si mesmas e acham que tá faltando um pedaço nelas. O homem não. Acha que tem a mais e está na vantagem. Olha aqui menininha, muito legal oh! Sabia que ela fica dura de manhã pra gente fazer xixi?
Na frente da casa de minha vó, no bairro do Pici (próximo a antiga base aérea americana da Segunda Grande Guerra) tinha um muro baixo. Eu vivia ali nos fins de tarde, quando conseguia fugir dos cuidados de quem estivesse me pastorando pra não traquinar ou fazer alguma arte de menino danado. Parado no muro pra ver o movimento. De repente vejo aquela moça já bem crescida vindo pela rua, caminhando pela calçada, requebrando com roupinha curta, as pernas de fora, duas pêras debaixo da blusa, hum! Não deu outra. Perguntei na hora. Na lata! Ei, tu tem pinta? Ela assustou-se, Ãhn? Coisinha linda (da cabeça grande)! Tenho não, fofinho, por quê? tu tem? Ela perguntou apertando minhas bochechas. Tenho sim, oh aqui, ó!
Não é que eu baixei a calça ali mesmo e mostrei pra ela, assim na maior naturalidade, orgulhoso do pinto. Eu com apenas três anos. Era quase final do ano de 1973. Depois, foi ela que saiu contando a história pra todo mundo no bairro. Acho que isso só ocorreu naquele tempo porque estávamos em plena ditadura militar e eu, muito curioso, ainda tinha muito a aprender sobre as mulheres.

quinta-feira, 15 de maio de 2008

Matô!!!!

Tem um episódio, para mim muito relevante, que aconteceu logo que nasci. Já que estou dedicando este blog as minhas lembranças mais remotas, não posso deixar de escrever sobre isso aqui. É uma historinha que durante muito tempo me serviu como aprendizado sobre vários aspectos. Até hoje falo dela quando estou tratando sobre relacionamentos de qualquer tipo. Na verdade tem a ver com a inveja. A inveja boa e a má. Em primeiro lugar, todo mundo tem inveja. É um sentimento presente na humanidade, não é de hoje. Cain matou Abel, por inveja. E o meu irmão, com menos de dois anos, quis me matar também. Calma, mais foi de brincadeirinha. Mas tentou. Por quê? Não, não foi por inveja, mas foi por ciúme, um outro sentimento bem próximo da inveja.
Ocorre que meu irmão era filho único, até eu nascer. Tinha uma mãe só para ele. Tinha todas as tias e tios para paparicá-lo e todos os bilu-bilus que quisesse só pra ele, já que também não havia primos na família. Quando eu nasci, ele se sentiu naturalmente ameaçado. Esqueceram dele, e aquela mãe que era só pra ele (quer dizer, ele já tinha que dividir com o papai, mas era diferente) de repente estava agarrada com o tal novo menino cabeçudo, que não largava o peito dela. Todo mundo trocou os bilu-bilus que eram exclusivamente pra ele, e passaram a dirigi-los exclusivamente para mim. Foi de mais pro coitado. Então sabe o que ele fez? Advinha! Coisa de criança. Pegou um pedaço de pau, e vindo de repente de algum lugar que não se sabe de onde (já que ninguém mais quase não olhava para ele mesmo) e disse: Matô!!! tacou o pau no cabeção. Pode?
Acho que foi fraco, eu devo ter me assustado, mas pela forma com que depois a história virou folclore lá em casa, eu acho que na hora virou piada. A reação de todos foi de descontração com a atitude engraçada do irmão mais velho enciumado por ter que a partir daquele momento dividir tudo que tinha e todos com um novo personagem da família, eu, o Valbão.
Bom, de qualquer forma, a atitude dele não exatamente foi por inveja. foi por ciúme. Ciúme principalmente da atenção da mãe e dos outros. Mas se poderia aqui interpretá-la também por inveja. Inveja do que ele achava que eu tinha e ele não tinha mais. Ou, inveja de algo que ele não queria que ninguém mais tivesse, fora ele. O fato é que, se ele tivesse me matado, quem teria morrido seria ele. Percebi isso depois, porque com o passar do tempo eu comecei a sentir inveja dele também. Mas eu não tentei assassiná-lo. Se tivesse, estaria tentando contra minha própria vida. Sabe por quê? Porque toda vez que eu sentia inveja dele, a inveja era boa e me ajudava a crescer. Se o meu irmão aprendesse algo que eu não soubesse fazer, eu, com inveja, crescia mais um pouco na vida tentando superá-lo. Acredito que ele também fez isso, porque quando eu conseguia passar dele, por exemplo, aprendendo novas músicas mais difíceis de tocar no violão, ele também mudava de atitude a se dedicava mais à música para me superar e me fazer mais inveja. Assim, foi uma inveja boa que nos salvou. Na escola também disputamos. E esta disputa nos salvou.
Ou seja, parafraseando Nietzsch, a inveja que não nos mata, nos faz crescer para a vida. E a inveja que nos faz tentar destruir os outros, na verdade destrói a nós mesmos. Né não?

domingo, 11 de maio de 2008

Falei com Deus, sim!

Quando eu tinha assim por volta de 9 anos, falei com Deus. Minha crença era tão forte que todos os dias eu falava com ele, meu Pai Divino. Mas teve um dia muito especial. O dia em que eu pude sentir um sinal de que ele estava se comunicando concretamente comigo.
Naquele tempo, minha mãe determinava tarefas para todos os filhos. A mim me cabia a obrigação de aguar o jardim todas as tardes. Bom, no Ceará não é de chover muito. O sistema de abastecimento da cidade era muito ruim e a água chegava bem fraquinha na ponta da mangueira que eu usava para cumprir as ordens de minha querida mãe. Em compensação a grama era muito grande e a impressão que eu tinha era que nunca iria acabar de aguar tudo com aquela velocidade que a água caía. A verdade é que eu vivia entediado com aquela tarefa. No mesmo horário, na TV era apresentado o programa Sítio do Pica-pau Amarelo, eu adorava aquilo e preferia estar na TV a estar aguando o jardim naquela agonia sem fim. Ironia do destino, hoje eu sei que é bem mais agradável (e saudável) ficar entre as plantas do que diante da TV.
Num desses dias, enquanto tentava sem sucesso apressar o jato de água da mangueira, Deus falou comigo. Falou mesmo! Não sei dizer exatamente como se deu a transmissão da mensagem. Até hoje tenho dúvida se foi de dentro dos pingos que saíam da mangueira, ou se foi das poucas nuvens no céu. Eu só lembro que o sol era muito forte, o céu azul e eu assim quase num transe devido ao tédio e o calor. O importante foi que a mensagem chegou até a minha consciência, e era a seguinte: “Pode ter certeza que na quinta-feira vai chover. Tenha fé que eu existo. Vou lhe provar isso fazendo chover logo cedo pela manha daqui a três dias.”
Dito e feito. Quinta-feira pela manhã acordei cedinho e logo me lembrei da mensagem. Estava chovendo. Não era muito forte, mas o tempo estava fechado e chovia desde a madrugada em Fortaleza. As plantas estavam todas molhadas e contentes. O calor havia dado uma trégua e naquela dia eu não precisaria perder mais um capítulo das aventuras do Pedrinho, do Saci Pererê e companhia. Foi maravilhoso. Agradeci a Deus por muitas semanas seguidas. Fiquei maravilhado. Falei pra todo mundo o que havia acontecido comigo. É claro que ninguém levou muito a sério. Isso foi até motivo para a turma mangar bastante de mim. Mas eu permanecia contente porque havia sim falado com Deus. Ninguém me diria que não. Ninguém me convenceria do contrário. E tanto foi verdade que até hoje guardei aquele dia como o início de minha consciência por gente, e de minha fé no bem e no divino. Foi maravilhoso. Meu grande Pai Divino teve compaixão de mim e mandou chuva para o Ceará. Para aliviar o calor, e também para aliviar a preguiça de aguar as plantinhas de minha mãe naquela antiga casa onde morávamos.

quarta-feira, 7 de maio de 2008

Cabeção

Eu nasci às 8h da manhã no primeiro dia do equinócio da primavera de 1970. Era 23 de setembro e o Estado do Ceará atravessava mais um ano de seca e miséria no sertão semi-árido, agreste. O mundo ainda estava efervescente após os movimentos sociais e protestos de 1968. Em 1969 o homem havia pisado a lua. No Brasil estávamos em plena ditadura Geisel. E em Fortaleza o pintor acreano primitivista Chico da Silva pintava com carvão seus galos de briga enigmáticos e geniais nos muros da praia do Pirambu.
Sob o sol forte e escaldante litorâneo, que vi pela primeira vez logo cedo entrar pela janela da sala de parto, saí do hospital para sentir o aroma salgado “dos verdes mares bravios da minha terra natal”. Aqui estava eu, vivo e na terra, para iniciar minha aventura solitária e maravilhosa pela face da terra.
Mas não foi fácil nascer não. Como todo bom cearense da cabeça chata e grande, dei muito trabalho pra sair da barriga de minha mãe, e, diga-se de passagem, nasci de parto normal. Foi uma confusão pra puxar aquela cabeça. Tudo bem que os cearenses têm a cabeça grande, mas tenho que confessar que a minha já era, desde aquele dia que veio ao mundo, maior um pouco, um pouquinho só, digamos assim, do que a maioria.
Puxa de um lado, puxa do outro. Vai sair, vai sair. Minha mãe foi uma guerreira pra me dar a luz naquele dia. Eu seria o segundo filho dela. Ela já havia dado a luz a um menino e desejava uma menina agora (pra fazer o casal), mas veio um cabeção. E já saí de pinto duro mijando quem estivesse pela frente, como que quisesse dizer: “eu sou é macho negrada”. Pelo menos foi isso que me contaram. E eu acrescentei as entrelinhas. Só não dá pra dizer, como diz um tio meu, que lembro perfeitamente bem do dia em que nasci. Eu não lembro de tudo e por isso estas palavras que escrevo não são assim tão verdadeiras. Mas alguma vírgula é sim verdade. Também já faz tanto tempo que até quem estava lá já esqueceu. Talvez só a minha mãe não tenha, coitada.
Mas nasci. E com uma vontade enorme de mamar, de berrar, de crescer, de saber, de falar, de correr, de escrever, enfim, de viver.

quinta-feira, 17 de abril de 2008

José de Alencar

Iracema
Verdes mares bravios de minha terra natal, onde canta a jandaia nas frondes da carnaúba;
Verdes mares, que brilhais como líquida esmeralda aos raios do sol nascente, perlongando as alvas praias ensombradas de coqueiros;
Serenai, verdes mares, e alisai docemente a vaga impetuosa, para que o barco aventureiro manso resvale à flor das águas.
Onde vai a afouta jangada, que deixa rápida a costa cearense, aberta ao fresco terral a grande vela?
Onde vai como branca alcíone buscando o rochedo pátrio nas solidões do oceano?
Três entes respiram sobre o frágil lenho que vai singrando veloce, mar em fora
Um jovem guerreiro cuja tez branca não cora o sangue americano; uma criança e um rafeiro que viram a luz no berço das florestas, e brincam irmãos, filhos ambos da mesma terra selvagem
A lufada intermitente traz da praia um eco vibrante, que ressoa entre o marulho das vagas:
— Iracema!
O moço guerreiro, encostado ao mastro, leva os olhos presos na sombra fugitiva da terra; a espaços o olhar empanado por tênue lágrima cai sobre o jirau, onde folgam as duas inocentes criaturas, companheiras de seu infortúnio.
Nesse momento o lábio arranca d'alma um agro sorriso
Que deixara ele na terra do exílio?
Uma história que me contaram nas lindas várzeas onde nasci, à calada da noite, quando a lua passeava no céu argenteando os campos, e a brisa rugitava nos palmares.
Refresca o vento.
O rulo das vagas precipita. O barco salta sobre as ondas e desaparece no horizonte. Abre-se a imensidade dos mares, e a borrasca enverga, como o condor, as foscas asas sobre o abismo.
Deus te leve a salvo, brioso e altivo barco, por entre as vagas revoltas, e te poje nalguma enseada amiga. Soprem para ti as brandas auras; e para ti jaspeie a bonança mares de leite!
Enquanto vogas assim à discrição do vento, airoso barco, volva às brancas areias a saudade, que te acompanha, mas não se parte da terra onde revoa.