sábado, 31 de maio de 2008

Grapette e a professora inesquecível

De passagem eu lembro vagamente de dois lances na escolinha do jardim da infância onde estudei por alguns anos e que ficava no outro quarteirão de onde eu morava, na mesma rua Maceió do bairro Henrique Jorge (periferia de Fortaleza). Era por volta de 1974.
A escola se chamava Instituto Getúlio Vargas. A diretora, uma mulher brigona, ainda lembro. Chamávamos ela de Dona Nezinha, e tinha também a Dona Meire, supervisora, não menos chata. Pelo menos essa é a lembrança que tenho delas.
Elas deviam ser pessoas boas, tirando os traumas, atrasos de vida e problemas de audição que causaram na maioria dos alunos que por lá passaram (assim como eu), o resto está tudo bem. Na verdade, o fato é que elas sempre falavam gritando (muito alto mesmo) em tom de briga com os alunos (já quase môcos) e todo mundo tinha muito medo delas. Quer dizer, todo mundo tinha mesmo era muito pânico delas. Eu acho que a gente imagina naquela época que se elas pegassem algum de nós errado, esganariam ali mesmo na frente de todo mundo. Toda vez que elas apareciam no corredor e iam se aproximando da porta das salas tocava aquela música do Alfred Hitchcock assim: Tri.. Tri ... Tri.. Tri ...Tri.. Tri ...Tri.. Tri ...
Resumindo, a pedagogia delas não era muito avançada.
Mas não é sobre isso que vou escrever. O que mais lembro daquela época é da imagem da minha professora mais querida. Ah! minha professora. Infelizmente esqueci o nome dela (depois vou telefonar pra mamãe e perguntar. Ela deve lembrar. Eu tô com o nome da professora aqui na ponta de língua mais não sai). Era.. Era... Tia não sei o que. Todo mundo chamava ela de Tia, pronto. Como é que eu lembro o nome daquelas duas barangas que gritavam o tempo todo no meu ouvido e não lembro o da minha professora querida, caramba! Tudo bem, vamos pra frente.
Bom, como eu disse no começo, são dois lances que lembro daquele tempo. E como eu esqueci mesmo o nome da professora, ela também nem tem muito a ver com o que aconteceu, não vou falar dela também.
A história é a seguinte: nos dois lances a professora deu uma saidinha da sala. Eu lembro. Foi só ela sair começou aquela bagunça. Papel prum lado, livro pro outro, muito barulho. A sala virou um festa. Todo mundo em pé e tal. Aí eu muito artista resolvi subir na mesa da professora. 'Atenção pessoal, muita atenção, olha aqui, olha aqui, eu vou tirar a roupa!!!' Ãahhh... As meninas ficaram perplexas. 'Tira.. tira... tira..Duvido!' Pois não é que eu abaixei o fecho-ecler da calça e botei o pinto pra fora todo orgulhoso e enxerido na sala de aula em pé na mesa da professora.
Pois é. Não poderia deixar de contar esse feito grandioso e revolucionário (quase poético) aqui nesse blog que dedico a minha infância radical e irada no Ceará.
Depois desci rápido, sentei na carteira, a professora chegou, todo mundo calou a boca e eu fiquei bem quietinho. Acho que alguém me dedurou pra professora, mas não lembro. Depois ela não acreditou e não deu em nada.
A outra história foi a seguinte: Eu nunca levava lanche para a escola, porque morava muito próximo, e a empregada trazia pra mim no intervalo uma vitamina de goiaba que eu recebia todos os dias pelo portão da escola. A maioria dos alunos, não. Bebiam coca-cola. Compravam na cantina que também vendia salgados e sanduíches variados. Hum... Aquilo era meu sonho de consumo, bicho besta é menino...
Um dia minha mãe me fez uma surpresa e disse pra eu levar para o lanche da escola uma garrafa cheiinha de Grapette (quem bebe repete era o slogan). Seria a minha merenda daquele dia acompanhada por um salgado que não lembro agora (merenda era como a gente dava naquele tempo para o lanche).
Fiz uma festa pra mim mesmo dentro de mim. Era muito significativo aquilo. Muito status. Tanto que coloquei a garrafa colada na minha carteira (carteira era como a gente chamava naquele tempo a cadeira e mesa conjugados onde sentávamos). Coloquei a garrafa tão perto de mim que de repente... Eu nem senti. Foi uma decepção total e a minha festa foi para no chão da sala, vermelho escuro como sangue. Eu olhei e vi azulado como vinho no chão entre os pedaços de vidro tricado entre o nome despedaçado do mais famoso refrigerante da época.
O pior foi que eu não acreditei e não acredito até hoje que fui eu quem derrubei a garrafa no chão e ela explodiu. 'Quem foi? Quem foi?' Acusava eu um suposto culpado chorando.
Bom, só sei de uma coisa: naquele dia nem que eu quisesse repetiria o grapette que nem pude beber pela primeira vez na sala antes de ter vontade de mais um. Um dia da caça, outro da professora. Quem sabe não foi castigo pela traquinagem que aprontei mesa de minha inesquecível primeira professora que esqueci o nome. Professora, mil desculpas, me perdoa, tá?

segunda-feira, 19 de maio de 2008

Doce mistério das mulheres

Continuando a falar das historinhas remotas de minha infância irada no Ceará, lembrei do nascimento da minha irmã. Quer dizer, na verdade eu não lembro de nada, as pessoas é que foram me contando depois e eu assimilei de tanto ouvir.
Bom, no início da década de 1970, éramos apenas eu e meu irmão. Eu iria completar três anos. De repente, da barriga da minha mãe saí uma outra pessoa.
Não pode ser. Mas como é que pode? Como é que é isso? De onde foi que ela veio? E ainda por cima ela não tem pinto? Êpa! Não tem pinto?
Pois é! Eu com quase três anos de idade fiquei perplexo ao ver pela primeira vez na vida uma xoxota. Fiquei chocado mesmo. Como é que pode? Não era pra ela ter uma pinta também não? Afinal, eu tinha uma, então todo mundo deveria ter também.
O pior não foi a minha perplexidade. Pior foi que depois daquele dia, em que vi minha irmã pela primeira vez e constatei que ela não tinha pinta, depois daquele dia eu passei a perguntar pra todo mundo, que via pela frente, se tinha ou não pinta.
Um vez chegou uma visita pro meu pai. Todo mundo bem sério na sala falando de trabalho, aí no meio da conversa o cabeção perguntava: ei tu também tem pinta tem? Rãn rãn rãn rãn rãn!!! essas crianças de hoje!!
Na escolinha foi só chegar na sala: professora a senhora tem pinta? Porque a minha irmã nasceu e ela não tem pinta não, oh! Até na igreja, na hora da missa, tinha uma menina do meu tamanho querendo brincar debaixo dos bancos. Eu engatinhei por entre as pernas dos fiéis, cheguei perto dela: tu tem pinta ou é barata? É barata, é? Então como é que tu faz xixi?
Eu acho que foi dessa mesma forma de questionamento infantil que Freud desenvolveu a teoria da inveja do pênis. Imagine as meninas que vêem seus irmãos nascerem com pintos. Depois olham pra si mesmas e acham que tá faltando um pedaço nelas. O homem não. Acha que tem a mais e está na vantagem. Olha aqui menininha, muito legal oh! Sabia que ela fica dura de manhã pra gente fazer xixi?
Na frente da casa de minha vó, no bairro do Pici (próximo a antiga base aérea americana da Segunda Grande Guerra) tinha um muro baixo. Eu vivia ali nos fins de tarde, quando conseguia fugir dos cuidados de quem estivesse me pastorando pra não traquinar ou fazer alguma arte de menino danado. Parado no muro pra ver o movimento. De repente vejo aquela moça já bem crescida vindo pela rua, caminhando pela calçada, requebrando com roupinha curta, as pernas de fora, duas pêras debaixo da blusa, hum! Não deu outra. Perguntei na hora. Na lata! Ei, tu tem pinta? Ela assustou-se, Ãhn? Coisinha linda (da cabeça grande)! Tenho não, fofinho, por quê? tu tem? Ela perguntou apertando minhas bochechas. Tenho sim, oh aqui, ó!
Não é que eu baixei a calça ali mesmo e mostrei pra ela, assim na maior naturalidade, orgulhoso do pinto. Eu com apenas três anos. Era quase final do ano de 1973. Depois, foi ela que saiu contando a história pra todo mundo no bairro. Acho que isso só ocorreu naquele tempo porque estávamos em plena ditadura militar e eu, muito curioso, ainda tinha muito a aprender sobre as mulheres.

quinta-feira, 15 de maio de 2008

Matô!!!!

Tem um episódio, para mim muito relevante, que aconteceu logo que nasci. Já que estou dedicando este blog as minhas lembranças mais remotas, não posso deixar de escrever sobre isso aqui. É uma historinha que durante muito tempo me serviu como aprendizado sobre vários aspectos. Até hoje falo dela quando estou tratando sobre relacionamentos de qualquer tipo. Na verdade tem a ver com a inveja. A inveja boa e a má. Em primeiro lugar, todo mundo tem inveja. É um sentimento presente na humanidade, não é de hoje. Cain matou Abel, por inveja. E o meu irmão, com menos de dois anos, quis me matar também. Calma, mais foi de brincadeirinha. Mas tentou. Por quê? Não, não foi por inveja, mas foi por ciúme, um outro sentimento bem próximo da inveja.
Ocorre que meu irmão era filho único, até eu nascer. Tinha uma mãe só para ele. Tinha todas as tias e tios para paparicá-lo e todos os bilu-bilus que quisesse só pra ele, já que também não havia primos na família. Quando eu nasci, ele se sentiu naturalmente ameaçado. Esqueceram dele, e aquela mãe que era só pra ele (quer dizer, ele já tinha que dividir com o papai, mas era diferente) de repente estava agarrada com o tal novo menino cabeçudo, que não largava o peito dela. Todo mundo trocou os bilu-bilus que eram exclusivamente pra ele, e passaram a dirigi-los exclusivamente para mim. Foi de mais pro coitado. Então sabe o que ele fez? Advinha! Coisa de criança. Pegou um pedaço de pau, e vindo de repente de algum lugar que não se sabe de onde (já que ninguém mais quase não olhava para ele mesmo) e disse: Matô!!! tacou o pau no cabeção. Pode?
Acho que foi fraco, eu devo ter me assustado, mas pela forma com que depois a história virou folclore lá em casa, eu acho que na hora virou piada. A reação de todos foi de descontração com a atitude engraçada do irmão mais velho enciumado por ter que a partir daquele momento dividir tudo que tinha e todos com um novo personagem da família, eu, o Valbão.
Bom, de qualquer forma, a atitude dele não exatamente foi por inveja. foi por ciúme. Ciúme principalmente da atenção da mãe e dos outros. Mas se poderia aqui interpretá-la também por inveja. Inveja do que ele achava que eu tinha e ele não tinha mais. Ou, inveja de algo que ele não queria que ninguém mais tivesse, fora ele. O fato é que, se ele tivesse me matado, quem teria morrido seria ele. Percebi isso depois, porque com o passar do tempo eu comecei a sentir inveja dele também. Mas eu não tentei assassiná-lo. Se tivesse, estaria tentando contra minha própria vida. Sabe por quê? Porque toda vez que eu sentia inveja dele, a inveja era boa e me ajudava a crescer. Se o meu irmão aprendesse algo que eu não soubesse fazer, eu, com inveja, crescia mais um pouco na vida tentando superá-lo. Acredito que ele também fez isso, porque quando eu conseguia passar dele, por exemplo, aprendendo novas músicas mais difíceis de tocar no violão, ele também mudava de atitude a se dedicava mais à música para me superar e me fazer mais inveja. Assim, foi uma inveja boa que nos salvou. Na escola também disputamos. E esta disputa nos salvou.
Ou seja, parafraseando Nietzsch, a inveja que não nos mata, nos faz crescer para a vida. E a inveja que nos faz tentar destruir os outros, na verdade destrói a nós mesmos. Né não?

domingo, 11 de maio de 2008

Falei com Deus, sim!

Quando eu tinha assim por volta de 9 anos, falei com Deus. Minha crença era tão forte que todos os dias eu falava com ele, meu Pai Divino. Mas teve um dia muito especial. O dia em que eu pude sentir um sinal de que ele estava se comunicando concretamente comigo.
Naquele tempo, minha mãe determinava tarefas para todos os filhos. A mim me cabia a obrigação de aguar o jardim todas as tardes. Bom, no Ceará não é de chover muito. O sistema de abastecimento da cidade era muito ruim e a água chegava bem fraquinha na ponta da mangueira que eu usava para cumprir as ordens de minha querida mãe. Em compensação a grama era muito grande e a impressão que eu tinha era que nunca iria acabar de aguar tudo com aquela velocidade que a água caía. A verdade é que eu vivia entediado com aquela tarefa. No mesmo horário, na TV era apresentado o programa Sítio do Pica-pau Amarelo, eu adorava aquilo e preferia estar na TV a estar aguando o jardim naquela agonia sem fim. Ironia do destino, hoje eu sei que é bem mais agradável (e saudável) ficar entre as plantas do que diante da TV.
Num desses dias, enquanto tentava sem sucesso apressar o jato de água da mangueira, Deus falou comigo. Falou mesmo! Não sei dizer exatamente como se deu a transmissão da mensagem. Até hoje tenho dúvida se foi de dentro dos pingos que saíam da mangueira, ou se foi das poucas nuvens no céu. Eu só lembro que o sol era muito forte, o céu azul e eu assim quase num transe devido ao tédio e o calor. O importante foi que a mensagem chegou até a minha consciência, e era a seguinte: “Pode ter certeza que na quinta-feira vai chover. Tenha fé que eu existo. Vou lhe provar isso fazendo chover logo cedo pela manha daqui a três dias.”
Dito e feito. Quinta-feira pela manhã acordei cedinho e logo me lembrei da mensagem. Estava chovendo. Não era muito forte, mas o tempo estava fechado e chovia desde a madrugada em Fortaleza. As plantas estavam todas molhadas e contentes. O calor havia dado uma trégua e naquela dia eu não precisaria perder mais um capítulo das aventuras do Pedrinho, do Saci Pererê e companhia. Foi maravilhoso. Agradeci a Deus por muitas semanas seguidas. Fiquei maravilhado. Falei pra todo mundo o que havia acontecido comigo. É claro que ninguém levou muito a sério. Isso foi até motivo para a turma mangar bastante de mim. Mas eu permanecia contente porque havia sim falado com Deus. Ninguém me diria que não. Ninguém me convenceria do contrário. E tanto foi verdade que até hoje guardei aquele dia como o início de minha consciência por gente, e de minha fé no bem e no divino. Foi maravilhoso. Meu grande Pai Divino teve compaixão de mim e mandou chuva para o Ceará. Para aliviar o calor, e também para aliviar a preguiça de aguar as plantinhas de minha mãe naquela antiga casa onde morávamos.

quarta-feira, 7 de maio de 2008

Cabeção

Eu nasci às 8h da manhã no primeiro dia do equinócio da primavera de 1970. Era 23 de setembro e o Estado do Ceará atravessava mais um ano de seca e miséria no sertão semi-árido, agreste. O mundo ainda estava efervescente após os movimentos sociais e protestos de 1968. Em 1969 o homem havia pisado a lua. No Brasil estávamos em plena ditadura Geisel. E em Fortaleza o pintor acreano primitivista Chico da Silva pintava com carvão seus galos de briga enigmáticos e geniais nos muros da praia do Pirambu.
Sob o sol forte e escaldante litorâneo, que vi pela primeira vez logo cedo entrar pela janela da sala de parto, saí do hospital para sentir o aroma salgado “dos verdes mares bravios da minha terra natal”. Aqui estava eu, vivo e na terra, para iniciar minha aventura solitária e maravilhosa pela face da terra.
Mas não foi fácil nascer não. Como todo bom cearense da cabeça chata e grande, dei muito trabalho pra sair da barriga de minha mãe, e, diga-se de passagem, nasci de parto normal. Foi uma confusão pra puxar aquela cabeça. Tudo bem que os cearenses têm a cabeça grande, mas tenho que confessar que a minha já era, desde aquele dia que veio ao mundo, maior um pouco, um pouquinho só, digamos assim, do que a maioria.
Puxa de um lado, puxa do outro. Vai sair, vai sair. Minha mãe foi uma guerreira pra me dar a luz naquele dia. Eu seria o segundo filho dela. Ela já havia dado a luz a um menino e desejava uma menina agora (pra fazer o casal), mas veio um cabeção. E já saí de pinto duro mijando quem estivesse pela frente, como que quisesse dizer: “eu sou é macho negrada”. Pelo menos foi isso que me contaram. E eu acrescentei as entrelinhas. Só não dá pra dizer, como diz um tio meu, que lembro perfeitamente bem do dia em que nasci. Eu não lembro de tudo e por isso estas palavras que escrevo não são assim tão verdadeiras. Mas alguma vírgula é sim verdade. Também já faz tanto tempo que até quem estava lá já esqueceu. Talvez só a minha mãe não tenha, coitada.
Mas nasci. E com uma vontade enorme de mamar, de berrar, de crescer, de saber, de falar, de correr, de escrever, enfim, de viver.